por Lilian Brunetta
Em 2024, o contingente de execuções fiscais era de aproximadamente 31% do total de casos pendentes no Poder Judiciário, com taxa de congestionamento de 87,8%.. A falência e o esgotamento dessa forma de resolução de conflitos para a esfera tributária estão postos. Contudo, é preciso reconhecer que o descompasso entre a função jurisdicional do Estado Clássico e a nossa realidade complexa não se restringe à esfera fiscal. Ainda que seja possível observar a métrica de produtividade dos tribunais (os quais tem buscado entregar seu produto final em escala), os recursos disponíveis são insuficientes para uma demanda cada vez mais acentuada.
Pois bem, sem se retomar a análise pormenorizada da Lei de Execuções Fiscais atual (Lei 6.830), tem se que a Constituição Federal de 1988, em seu art. 5, inc. LIV, determina que nenhuma pessoa será privada de sua liberdade e de seus bens e direitos sem que se observe a instauração de processo legal, observadas, não apenas a previsibilidade de atos próprios que ali se encadeiem, mas também o contraditório e a ampla defesa.
Fala-se ali de “processo”, permitindo se inferir que a tônica poderia ser apenas judicial, contudo, a própria Carta Magna nos indica de pronto que a mesma lógica é aplicada à esfera administrativa (art. 5, LV, CF/1988), tendo o princípio da legalidade como fio condutor de todo o desenrolar do novelo.
Pires (2020), ao analisar a viabilidade de realização de execução fiscal em sede administrativa, parte do conceito de autoexecutoriedade do ato administrativo, aí entendido como a capacidade de a Administração executar as obrigações decorrentes de seus atos, sem a necessidade de intervenção de outro poder.
Esse autor, na sequência de uma análise encadeada acerca do principio da legalidade, juridicidade, supremacia do interesse público e princípio da eficiência, afirma que os atos administrativos devem ser distinguidos entre aqueles que se caracterizariam pela exigibilidade pura e simples– marcada pela coerção indireta e a aqueles tendentes à executoriedade, na qual medidas diretas de incentivo a cumprimento seriam necessárias.
Neste sentido, desde que o ato administrativo prévio estivesse validamente posto; notificação efetiva do contribuinte fosse realizada e se aferisse descumprimento comprovado da obrigação pelo particular, a autoexecutoriedade poderia ser posta em prática. Não, é claro, sem que a legalidade fosse observada e que todos os princípios vinculados ao devido processo legal estivessem sendo levados em conta.
Ademais, mesmo em casos de autoexecutoriedade, o controle judicial tanto antes quanto depois do seu exercício, pela via administrativa ou judicial deveria estar assegurado.
Feita esta digressão, atualmente, sabe-se que a autoexecutoriedade estatal é limitada, pois a administração pública não tem a prerrogativa de tomar por suas próprias mãos o patrimônio privado. Nesse contexto, o processo expropriatório é conduzido de maneira a garantir a segurança, visando principalmente satisfazer o desejo arrecadatório do Estado, contudo, pode ser realizada exclusivamente pelo Poder Judiciário, assegurando que tais atos ocorram dentro dos limites da legalidade e da proteção dos direitos individuais.
O PL 2488/2022, se aprovado, pode começar a alterar esta realidade já que introduz um modelo de execução fiscal administrativa cujos atos de cobrança extrajudicial passariam a ser realizados por tabeliães em conjunto com servidores do Poder Judiciário.
A principal crítica colocada à redação deste projeto de lei leva em consideração um mero deslocamento dos problemas vivenciados pelo Poder Judiciário para a esfera dos auxiliares da justiça. Em caso de aprovação desta lei, a legalidade estaria observada. Isso porque, a despeito de o art. 146 da CF/88 tratar de necessidade de utilização de lei complementar para o tratamento de questões em matéria tributária e a EC 132/2024 ter feito alguns complementos a respeito de necessidade deste tipo normativo para regular arrecadação, nada é dito a respeito de cobrança efetiva de créditos validamente lançados.
Entrementes, efeitos práticos de satisfação e recuperabilidade destes créditos estariam sendo alcançadas? Ao se analisar literatura internacional, percebe-se que as funções de executoriedade limitada são amplamente praticadas pelas administrações públicas, relegando-se ao poder judiciário apenas questões complexas; controle de legalidade dos atos de lançamento e excessos perpetrados pelas fazendas públicas.
Aqui, o inverso se apresenta: seja pela cultura do litígio, seja pela complexidade de interpretação legal, seja pela dificuldade da conformidade fiscal, seja pela facilidade de acesso à justiça, seja pelos ganhos diretos e indiretos do litígio – o Poder Judiciário ainda é a primeira e ultima ratio assoberbada em matéria fiscal.
Diante do cenário de ineficiência crônica da jurisdição fiscal e da sobrecarga estrutural do Poder Judiciário, a proposta de implementação de uma execução fiscal administrativa, nos moldes do PL 2488/2022, representa uma tentativa legítima de modernizar os mecanismos estatais de cobrança, desde que pautada nos princípios constitucionais do devido processo legal, da legalidade e do controle jurisdicional. Ainda que envolva desafios operacionais e culturais, sobretudo quanto à segurança jurídica e à preservação de direitos fundamentais, a medida pode inaugurar um novo paradigma de eficiência arrecadatória, em consonância com experiências internacionais consolidadas. Assim, o debate não deve se restringir à sua viabilidade normativa, mas à sua capacidade de equilibrar autoridade pública e garantias individuais em um modelo de justiça fiscal mais eficaz.